O que NFTs teriam de especial?
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O que NFTs teriam de especial?

NFTs são um assunto que costuma despertar forte indignação.

Como assim existem pessoas pagando milhões de dólares pelo “direito de dizer que são donos” de JPEGs? JPEGs valiosos por que estão hospedados em uma blockchain X? Ora! Isso só pode ser mais uma evidência de que crypto é uma bolha sem pé nem cabeça!

Por mais que eu tenda — a priori — a concordar com os indignados, gostaria de lapidar minha opinião.

Por isso, investi um tempo para ler sobre assunto e, agora, para escrever minhas reflexões aqui. Neste post, vou resumir e esmiuçar os melhores argumentos pró-NFTs que consegui encontrar.


Um entusiasta de NFTs que me parece suficientemente sensato é Chris Dixon. É dele a melhor articulação que consegui encontrar sobre o que haveria de especial em NFTs.

Ele é um venture capitalists imerso em crypto e, claro, é natural que ele tenha um forte vested interest sobre o sucesso do setor. Feito esse caveat, vamos analisar o que ele tem escrito sobre NFTs.

Dixon acredita que NFTs mudarão os economics de criação e distribuição de conteúdo digital. E que, com essas mudanças, criadores passarão a ganhar mais dinheiro através da Internet (vs. o que conseguem ganhar atualmente).

Ele lista três razões para tanto:

  1. Plataformas de NFTs teriam take rates menores do que os das plataformas ditas incumbents
    Por exemplo, a App Store do iOS fica com 30% da receita de jogos e apps; plataformas de NFTs ficariam, portanto, com um pedaço menor.

  2. Com NFTs, criadores ganhariam mais porque conseguiriam ajustar a captura de valor econômico à “intensidade do interesse” de cada fã
    Isto é, através de NFTs, seria possível “cobrar” muito de quem gosta muito e pouco de quem gosta pouco. Em contraste, por exemplo, com o preço fixo para todos de uma assinatura de newsletter via Substack.

  3. NFTs transformariam a relação entre criador e consumidores em uma “sociedade”, em que os consumidores passam a ser “sócios” do criador e a deter parte do valor econômico da “comunidade”
    A assinatura de uma newsletter não é uma criação que pode ser “passada adiante”, não é algo facilmente negociável em mercados secundários. Um NFT é. Isso alteraria profundamente a dinâmica criador-criação-consumidor.

O mal entendido

Antes de examinar o mérito de cada um dos três pontos acima, vejamos como Dixon posiciona o “mal entendido” em torno de NFTs.

Para Chris Dixon, a mídia tende a alardear os preços dos leilões super caros e muitos acabam não prestando atenção nos movimentos verdadeiramente grassroots se formando em torno de NFTs:

The media narrative around NFTs has tended to focus on high priced one-off sales like Christie’s auctions, but in reality NFTs are best understood as a grassroots movement spanning a range of categories, including avatars (CryptoPunks, BAYC), games (Axie, Zed), collectibles (Top Shot), digital art (Foundation, SuperRare), and various up-and-coming new areas.

Por isso, para ele, mais relevante seria prestar atenção na quantidade de criadores e desenvolvedores entrando no setor:

The most exciting [data] is the number of new developers/creative projects entering the space. Each new project expands the design space and seeds a new wave of creators and developers.

Ok, talvez ele tenha mesmo um ponto válido.

Em outras palavras, nós, detratores, estaríamos distraídos pela (grande quantidade de) fumaça e não estaríamos vendo a centelha de um “fogo genuíno” queimando.

Com isso em mente, consideremos como Dixon explica os três motivos pelos quais NFTs reinventariam o arranjo econômico de comunidades online.

1. Take rates menores

Eis Dixon explicando porque take rates menores seriam uma das vantagens de NFTs vs. plataformas atuais:

NFTs platforms generally have low take rates, ranging from 2.5% to 15% (blockchains shift power to users → low switching costs → low take rates). This means most [value] went to creators and collectors.

This is in stark contrast to incumbent Web 2 platforms that take anywhere from 30% (app stores) to 100% (social networks) [...]

The incumbent Web 2 model for funding creative people — ads and algorithmic feeds — is deeply broken. Inspired by the success of digital goods in video games, NFTs offer a much better way to make money online [...]

Acima, Dixon não citou Substack e Ghost como exemplos de plataformas “Web 2”. É fato, no entanto, que ambas tem take rates bem inferiores aos da App Store e de redes sociais. Substack cobra 10% da receita gerada pelo autor. Ghost, por sua vez, cobra uma mensalidade que, via de regra, custa menos de 1% da receita. Além disso[1], Ghost, em particular, é open source e pode ser self-hosted.

Por outro lado — e em linha com o argumento de Dixon — é justo dizer que Substack, apesar de estar crescendo em popularidade, é minúsculo em alcance e relevância quando comparado, por exemplo, à App Store. É também justo apontar que NFTs parecem mais general purpose e poderiam, em princípio, envolver qualquer tipo de item digital, inclusive software. Substack parece “limitado” a texto.

Nesse sentido, a comparação mais apropriada seria a que Dixon fez: NFTs vs. App Store e redes sociais. Se a disputa é NFTs vs. App Store e redes sociais, um take rate menor é, sem dúvidas, um ponto a favor de NFTs.

Ponto para Dixon.

2. Captura granular da curva de demanda

Dixon descreveu da seguinte maneira a habilidade que NFTs teriam em capturar a área sob a curva de demanda:

[Another] way NFTs change creator economics is by enabling granular price tiering.

In ad-based models, revenue is generated more or less uniformly regardless of the fan’s enthusiasm level. As with Substack, NFTs allow the creator to “cream skim” the most passionate users by offering them special items which cost more. But NFTs go farther than non-crypto products in that they are easily sliced and diced into a descending series of pricing tiers.

NBA Top Shot cards range from over $100K to a few dollars. Fan of Bitcoin? You can buy as much or little as you want, down to 8 decimal points, depending on your level of enthusiasm. Crypto’s fine-grained granularity lets creators capture a much larger area under the demand curve.

Se a comparação fosse NFTs vs. Substack, a habilidade de capturar a “granularidade” da curva de demanda seria mesmo uma vantagem para NFTs. Porém, se a comparação relevante é NFTs vs. App Store tenho dificuldades para ver isso como uma vantagem de NFTs.

A habilidade de cobrar muito de quem deseja pagar muito e de cobrar nada de quem (ainda) não quer pagar é o “segredo” por trás de todos os jogos free-to-playe.g., Candy Crush, Clash Royale, etc — que monetizam através da App Store há anos. Certamente, Dixon sabe bem disso.

Tornar possível esse tipo de “cobrança granular” nada mais é do que mínimo necessário para competir com a App Store. NFTs não me parecem, portanto, especialmente melhor posicionados para atacar os incumbents por causa dessa habilidade.

3. Valor econômico compartilhado

A terceira razão pela qual NFTs mudariam os economics para criação e distribuição online seria através de ownership “compartilhada”. Dixon a descreveu assim:

And [the] most important way NFTs change creator economics is by making users owners, thereby reducing customer acquisition costs to near zero. Open any tech S-1 filing and you’ll see massive user/customer acquisition costs, usually going to online ads or sales staff. Crypto, by contrast, has grown to over a trillion dollars in aggregate market capitalization with almost no marketing spend. Bitcoin and Ethereum don’t have organizations behind them let alone marketing budgets, yet are used, owned, and loved by tens of millions of people.

Achei o parágrafo acima confuso. Não sei bem o que Dixon tinha em mente e tenho pelo menos quatro objeções.

A) Faltou comparar maçãs com maçãs (!)

Não consigo ver como pode ser adequado comparar crypto como um todo vs. uma empresa de tecnologia qualquer. Ora, se estamos analisando como NFTs poderiam disrupt a App Store e as redes sociais, por que não tentar comparações mais diretas?

Por que não comparar crypto vs. uma rede social bem sucedida? Facebook tem cerca de 2 bilhões de usuários e gastou praticamente zero em marketing. Twitter tem centenas de milhões de usuários e também cresceu forma orgânica. E não são as únicas que cresceram assim, há várias outras.

Se a comparação é vs. App Store, pergunto: quanto a Apple gastou em marketing para App Store ao longo da última década? A resposta é algo próximo zero[2].

B) Crescimento orgânico é altamente desejável, mas não é uma vantagem per se

Claro que crescimento rápido e orgânico é altamente desejável para qualquer negócio. Mas, ao afirmar que crypto teria conseguido crescer “a custo zero” por transformar usuários em owners, ele está descrevendo qual growth hack foi utilizado. Um growth hack é diferente de uma vantagem competitiva vs. App Store e redes sociais.

C) Mais sócios dividindo o bolo não é necessariamente desejável para o atual dono do bolo

Dixon escreveu que “most important way NFTs change creator economics is by making users owners”.

Ora, por que ter “sócios” pegando pedaços dos bolos seria melhor para criadores? Ou o tamanho de cada bolo ficaria muito maior, ou haveria muito mais bolos — bolos que hoje, por alguma razão, não existem.

Se essa é a forma mais importante pela qual NFTs mudam os economics para beneficiar criadores, por que não explicar melhor como ele imagina que essas coisas acontecerão?

D) Desejo de ficar rico rápido torna as relações sociais rasas

Por fim, há o elefante na sala que Dixon parece simplesmente ignorar.

NFTs são, via de regra, líquidos em mercados secundários e quase sempre tem, de partida, uma etiqueta de preço. E, claro, isso tem atraído um frenesi de especulação.

A meu ver, é como se a especulação consumisse todo o “oxigênio da sala”. É como se o desejo por ficar rico rapidamente fosse a prioridade absoluta e ninguém tivesse tempo para nada mais.

Uma “comunidade” que funciona bem e por bastante tempo precisa ter algo a mais. E, para mim, este é o grande ponto de interrogação com consumer crypto.

Parecem estar faltando “ingredientes” que gerem interesse e engajamento de longo prazo. Ingredientes sociais capazes de “transmutar” as fortes motivações financeira de curto prazo.

Talvez Chris Dixon já esteja vendo esses ingredientes nos tais movimentos grassroots que ele citou — aqueles que ainda não estariam sendo bem compreendidos. Talvez ele já esteja mesmo enxergando algo genuíno e de longo prazo.

Eu, particularmente, ainda não vi nada assim.


  1. Além do take rate “baixo”, Substack e Ghost não são intermediários entre criadores e fãs. Pelo contrário, ambas permitem que escritores se conectem diretamente a seus leitores. Isto é, os escritores controlam a lista de endereços de email dos fãs e, por isso, podem facilmente migrar de plataforma. ↩︎

  2. A linha completa de SG&A da Apple é 5-7% da receita nos últimos anos. Nesses 5-7% estão incluídos, além de todo o marketing budget da empresa (não só para App Store), também todos os custos com pessoal administrativo. Em termos relativos, está claro que a Apple inteira gasta pouco dinheiro diretamente com marketing. ↩︎