Comparando Bitcoin às bases monetárias de moedas governamentais
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Comparando Bitcoin às bases monetárias de moedas governamentais

Se Bitcoin quer ser uma moeda, como compará-la com suas concorrentes? Mais especificamente, como comparar Bitcoin vs. as demais moedas em uso hoje ao redor do mundo?

Qual das várias métricas de money supply (como M1, M2, etc) é mais adequada economicamente para comparar Bitcoin e as moedas? Se tivermos uma métrica adequada para comparação, podemos, por exemplo, fazer um ranking de moedas, incluindo Bitcoin, de acordo com seu tamanho[1].

Essa era uma das perguntas na cabeça de Matthew Mežinskis e Fernando Ulrich há alguns anos.[2] A conclusão deles foi que Bitcoin se parece muito mais com a chamada base monetária do que com outras métricas clássicas de money supply.

A base monetária (ou base money, em inglês) é ultimate asset of settlement de uma economia. É o fim da linha de “liquidação”. Não existe nada abaixo da base monetária e qualquer coisa acima dela é uma obrigação (um passivo, uma claim, um IOU).

Para exemplos práticos sobre como calcular a base monetária de algumas economias, ver Apêndices ao final deste post.

Sob essa ótica, Bitcoin teria um papel parecido com o do ouro na padrão dólar-ouro de 1944 a 1971 (ou com o da prata no padrão prata, vigente em algumas moedas por alguns períodos). O ponto-chave é que os três — Bitcoin, ouro e prata — seriam, do ponto de vista econômico, ativos no final da linha de “liquidação”. Por esse motivo, métricas como M1, M2, M3 não seriam bons candidatos a comparações com Bitcoin (como tampouco o são para ouro e prata).

O fato de existirem eurodólares e de uma parcela gigantesca de contratos no mundo serem denominados em dólares americanos, são pontos fortíssimos a favor do dólar americano como a moeda global (tanto em termos de reservas internacionais, quanto em termos de unidade de conta). Porém, se existem US$ +100 trilhões de ativos e contratos denominados em dólares americanos, essa montanha de dinheiro são claims (e, portanto, abstrações) em cima do sistema monetário que o banco central americano controla. Esses US$ +100 trilhões não são o dólar em si.

O saldo na sua conta corrente no Itaú ou no BB também é uma claim. Seu saldo em Bitcoin em uma crypto exchange — como Mercado Bitcoin ou Binance — também é uma claim. Isto é, ao ter um saldo com uma crypto exchange ou com um banco, você é credor dessas instituições e, portanto, elas tem uma obrigação (passivo) com você. Em ambos casos, você não é, de fato, o dono do dinheiro.

No caso do dinheiro no banco comercial, há o FDIC (nos EUA) e o FGC (no Brasil), que deveriam lhe proteger como consumidor (até um certo limite de saldo). No mais, você está, no final do dia, confiando que a instituição vai honrar o valor que você lá depositou.[3]

Nenhum desses saldos é parte do base money. Seus saldos não são ativos finais no sistema monetário, eles estão camadas acima da “base”.


Todas essas observações levaram o Matthew Mežinskis a compilar o base money de praticamente todos os bancos centrais do mundo (e também de ouro e prata). Ele faz essa compilação trimestralmente e divulga os resultados em seu website e na sua conta no twitter.[4]


Apêndices

Como se calcula a base monetária?

Base monetária é:

  • O dinheiro físico circulando em moedas e papel-moeda; mais
  • As “contas de reserva” que cada banco comercial possui com o banco central e em que o settlement (liquidação final) de uma moeda é realizado

Os dois itens na base monetária são equivalentes. Isto é, tanto o dinheiro que existe fisicamente (em cofres e carteiras), quanto as contas de reserva são dinheiro e podem ser livremente trocadas entre si no banco central.

As contas de reserva dos bancos comerciais são totalmente digitais hoje em dia. Porém, desde a criação dos bancos centrais (a grande maioria foi criada ao longo do século XX), já acontecia settlement entre bancos comerciais no banco central usando os valores que esses bancos comerciais tinham em suas contas de reserva.[5]

Base monetária e a impressora do dinheiro

Outra maneira de ver o base money é tratá-lo como, literalmente, a printing press (impressora) de cada banco central.

A “impressão” de dinheiro para aumento (ou “queima” de dinheiro para redução) da base monetária fica a critério exclusivo de cada banco central. Eles detém um monopólio sobre a “base fundamental” do sistema financeiro de cada moeda nacional.

Ativos e passivos de bancos centrais

Hoje em dia, não há mais um ativo que dê lastro a uma moeda, como já houve com ouro e prata). O sistema monetário hoje é criado a partir das obrigações (passivos, claims) sobre a base money.

Se tudo começa das obrigações (passivos), considerando a definição contábil, como o balanço dos bancos centrais se “iguala”? Isto é, como a soma dos ativos consegue ser igual à soma dos passivos?

Para conseguir ativos suficientes para que "sustentar" seus passivos, os bancos centrais compram títulos no mercado e então lançam esses securities como ativos em seus balanços. É curioso perceber que esses títulos, na maioria das vezes, são internos ao sistema financeiro do país em questão — ou seja, o banco central cria “dinheiro” como passivo e, depois, compra ativos denominados no seu próprio dinheiro para fechar o “cálculo contábil”. O sistema financeiro de um país é “autocontido” e, portanto, circular!

Exemplos de bases monetárias (em 31 de dezembro de 2020)

  • O ECB (banco central europeu) reportou que a zona do euro tinha a seguinte base monetária, em trilhões de euros: 1.43T de banknotes in circulation + 3.49T em liabilities to euro area credit institutions related to monetary policy operations denominated in euro

  • O FED (banco central americano) reportou, em trilhões de dólares americanos, a seguinte base monetária: 2.09T de currency in circulation + 3.14T em deposits of depositary institutions

  • O BCB (Banco Central do Brasil) reportou, em bilhões de reais, a seguinte base monetária: 370B em meio circulante + 21B em contas de pagamento instantâneo (PIX)[6] + 39B em recolhimentos compulsórios e voluntários sobre recursos à vista[7]

Reservas internacionais não são base money

É importante ressaltar, por fim, que base money é diferente das chamadas reservas internacionais, que são utilizadas principalmente para "equilibrar" taxas de conversão entre moedas.

Eis como o ECB descreve as reservas internacionais:

The ECB’s foreign reserves ensure that the ECB has sufficient liquidity to conduct foreign exchange operations if needed. The objectives for the management of the ECB’s foreign reserves are, in order of importance: liquidity, security and returns.

The ECB’s foreign reserves portfolio consists of US dollars, Japanese yen, Chinese renminbi (CNY), gold and IMF's special drawing rights. The composition of the reserves changes over time, reflecting changes in the market values of invested assets, as well as the ECB’s foreign exchange and gold operations.


  1. A rigor, em termos práticos, não seria bem por tamanho. Seria um ranking por valor quando feita a conversão de um para uma unidade comum, que, tipicamente, hoje em dia, é o U.S. dollar. ↩︎

  2. Episódio Matthew Mežinskis (Crypto Voices) on How to Compare Bitcoin with Fiat (EP.203) do podcast On The Brink with Castle Island ↩︎

  3. Uma observação tangencial mas interessante sobre o assunto: crypto exchanges, em teoria, são fully reserved (1:1). Isto é, em teoria, todas suas obrigações estão, supostamente, completamente cobertas pelos ativos que elas possuem (isso é o que se chama de narrow banking). Isso é diferente de um banco comercial comum, que tem reservas fracionárias e cria dinheiro ao emprestá-lo (mesmo durante o época do gold standard, narrow banking era extremamente raro). ↩︎

  4. Exemplo: thread de @crypto_voices no twitter contendo os dados de base monetária ao redor do globo para o quatro trimestre de 2020. ↩︎

  5. Na época do padrão dólar-ouro, o ouro era lastro das contas de reserva. Esse ouro poderia ser resgatado junto ao banco central. Hoje, não existe mais nada resgatável por trás do saldo das contas. Se diz que é tudo fiat (fiduciário). ↩︎

  6. Note que, no Brasil, o PIX funciona 24/7 e, por ser equivalente à papel moeda em circulação (o “meio circulante”), eu estou incluindo-o na base monetária brasileira. ↩︎

  7. Para a base monetária brasileira, a partir do balanço do Banco Central do Brasil, só se deve considerar os depósitos compulsórios à vista. Há dois outros depósitos de instituições financeiras em moeda local (sobre recursos a prazo e sobre depósitos de poupança) que não entram na base monetária porque não são ativos finais com liquidação instantânea. ↩︎