No que acreditam os Bitcoiners mais fervorosos?

Se você tem (ou considera ter) Bitcoin, me parece prudente que você preste atenção ao que dizem os Bitcoiners mais fervorosos. Daí, depois de tê-los escutado atentamente, você pode formar sua própria opinião com mais embasamento.

Este post resume o discurso de um Bitcoiner fervoroso e acompanhadas das minhas reflexões.


Um Bitcoiner ferveroso acredita que Bitcoin vai se tornar a moeda global.

Essa crença parece se basear em dois argumentos. O primeiro é que, considerando as propriedades relevantes para dinheiro, Bitcoin seria melhor nesse conjunto de quesitos (pelo menos em teoria).

O segundo é que dinheiro estaria sujeito a uma dinâmica de winner-takes-all e que, portanto, o “destino inevitável” de Bitcoin é ser a moeda global (porque é melhor do que todas as outras alternativas).

Quais são, a meu ver, os principais problemas dessa linha de pensamento?


Concordar que Bitcoin tem propriedades teóricas melhores do que as de ouro, prata e moedas nacionais me parece algo razoável (e até fácil de aceitar).

Robert Breedlove, por exemplo, fala de cinco propriedades-chave para dinheiro: (1) divisibilidade; (2) durabilidade; (3) facilidade de ser reconhecido; (4) portabilidade; e (5) escassez. Considerando apenas essas cinco propriedades, no papel, parece razoável que Bitcoin seja melhor do que as alternativas.

Os defensores de ouro talvez tragam o ponto de que ouro tem um track record de milênios e que Bitcoin só existe há uma década. Eles tem um ponto. Claro que ter resistido aos testes do tempo é um sinal importante para a adoção de qualquer tecnologia!

Porém, a meu ver, o principal defeito no argumento dos Bitcoiners fervorosos não é relevar o track record do ouro. O principal problema está na premissa implícita de que boa parte do mundo vai ser eventualmente livre para escolher sua própria moeda.

Não acho que vai haver um “mercado para moedas” em que haveria livre competição e em que o “melhor” poderia eventualmente vencer. Me parece pouquíssimo provável que isso aconteça. E a razão é simples. Os governos nacionais e seus bancos centrais não permitirão que isso aconteça!

O establishment — que controla polícias, exércitos, prisões e leis — não vai simplesmente abrir mão do monopólio que possui sobre moedas nacionais. Em todos os países relevantes, o controle sobre moeda é parte fundamental de como o estado moderno funciona.


Se me parece altamente improvável que Bitcoin possa eventualmente “participar” de uma competição que poderia “vencer por mérito”, haveria outro caminho — um caminho mais provável — para Bitcoin eventualmente se tornar moeda largamente utilizada?

Uma cenário que Robert Breedlove verbalizou neste vídeo é que, aos poucos, um a um, os próprios bancos centrais comprarão Bitcoin.

Mas por que fariam isso?

Porque, ele diz, faria sentido ter Bitcoin como um “seguro” contra o sucesso de Bitcoin.

Pessoalmente, tenho grandes dificuldades para assimilar essa linha de argumentação. Além de ser um raciocínio que circular, há outros problemas relevantes.

Ora, observar que bancos centrais compram e vendem ouro e, daí, assumir que também comprariam Bitcoin é, a meu ver, uma conclusão excessivamente simplista. Para mim, está claro que os bancos centrais compram e vendem ouro por razões históricas. Governos tinham ouro antes de bancos centrais serem criados! Existem diversos outros ativos “finais” (isto é, que não são passivo de nenhuma outra instituição) que bancos centrais não compram (exemplo: prata). Por que comprariam Bitcoin?

E mais: por que um primeiro banco central compraria Bitcoin, legitimando seu maior competidor e, com isso, abrindo a porta para sua própria “destruição”? Que agente racional interessado em sua própria sobrevivência faria isso?


Se acho altamente improvável que um banco central com monopólio de moeda compre Bitcoin, quais alternativas sobram para Bitcoin avançar e se tornar moeda?

Talvez países que estejam relativamente à margem da ordem mundial atual, como Irã e Venezuela, possam iniciar um movimento de adoção de Bitcoin por bancos centrais? De um lado, isso poderia ser visto como um ataque ao status quo, em que o dólar americano é hegemônico. Porém, me parece que regimes totalitários gostam (e precisam?) ainda mais do controle sobre sua moeda nacional do que regimes democráticos. Por isso, acho bastante improvável esses países à margem sejam abertamente pró-Bitcoin.

Talvez países que já não tem moeda nacional “independente” poderiam ser os primeiros a adotar Bitcoin?[1] Eu não entendo muito do assunto (referência básica), mas esses me parecem os mais plausíveis. Porém, esses países são poucos, pequenos e, francamente, irrelevantes. Por mais que eventualmente possam abraçar Bitcoin, não acho que tenham “força” para então causar uma migração em massa. Pelo contrário, acho mais provável que sofram isolamento e, talvez, sanções.


Se acho que os cenários acima bem pouco plausíveis, existiria algum outro cenário para Bitcoin virar algo parecido com moeda que me pareça mais plausível?

Creio que o único cenário crível em que Bitcoin poderia realmente se tornar moeda relevante (talvez não global, mas talvez com centenas de milhões de “usuários”) é após uma crise socioeconômica imensa.

Nesse cenário, após essa gigantesca crise, o grupo que detivesse o poder promoveria mudanças profundas no atual sistema de estado-nação e nos arranjos financeiro-econômicos nele incluídos. Daí, nesse eventual grande reset[2], Bitcoin poderia ser a alternativa escolhida.

Por que acho esse cenário cataclísmico mais plausível do que os anteriores? Porque acho que as chances de que, em algum momento das próximas décadas, alguma grande crise ocorra são razoáveis.

Porém, que fique claro, mesmo com uma crise gigantesca, a escolha por Bitcoin não é, de forma alguma, automática. Haveria muitas outras alternativas possíveis — desde o retorno ao padrão ouro a novas moedas — e não é nem um pouco óbvio que Bitcoin seria o vencedor.

Ou seja, mesmo que eventualmente a ordem mundial seja redesenhada nas próximas décadas, as chances de Bitcoin se tornar moeda com amplo alcance seriam, na minha opinião, ainda pequenas.


Caso tenha algum comentário, não deixe de entrar em contato.

Estou especialmente interessado em saber (1) se estou esquecendo de algum cenário plausível ou (2) se minha opinião atual sobre as chances de algum dos cenários descritos acima está muito mal calibrada.


  1. Update, junho de 2021 — El Salvador acaba de aprovar uma lei que tornou Bitcoin uma moeda com curso legal no país. Antes, o dólar americano era a única moeda legal lá; agora são duas, US dollar e Bitcoin. Para entender melhor o que se passa lá, veja: tweet do presidente, notícia na Reuters, artigo na Bloomberg, boas informações na carta mensal da Hashdex e análise insightful no Doomberg. Teremos mais países pequenos copiando El Salvador? Aparentemente Tanzânia está considerando fazer o mesmo. De qualquer forma, minha opinião continua a mesma. A meu ver, por mais que Bitcoin possa (talvez) ser abraçada por países sem moedas próprias, continua sendo extremamente pouco plausível que Bitcoin consiga “invadir” países que tenham políticas monetárias próprias. ↩︎

  2. É importante perceber que essa crise precisaria ser muito mais profunda do que a que vivemos em 2008. A crise de 2008 não mudou praticamente nada no mundo em termos de arranjos de sociedade. Diria que o último reset econômico (em escala global) ocorreu entre o fim da Segunda Guerra Mundial (Bretton Woods) e o Choque Nixon de 1971. Ou seja, acho que essa crise precisaria ser algo da magnitude de uma Segunda Guerra Mundial. ↩︎