Bitcoin é arte?
Bitcoin e obras de arte não tem utilidade prática. Isso não impede, porém, que muita gente atribua valor a ambas.
Mas como algo que não tem utilidade prática pode ter valor para tanta gente? Como resolver esse aparente paradoxo?
Creio que a solução está nas construções sociais.
Construções sociais? Como assim?
Tanto Bitcoin quanto obras de arte famosas são objetos de narrativas poderosas. Essas narrativas (que são construções sociais) acabam por gerar demanda por Bitcoin e por arte. Dessa demanda (e sendo a oferta limitada), emerge seu valor.
A Mona Lisa
Considere, por exemplo, a Mona Lisa de Leonardo da Vinci.[1]
Por que essa pintura é tida como extremamente valiosa?
A Mona Lisa é muito valiosa porque muitos agentes da sociedade reconhecem-na como muito valiosa. Simples assim.
Em arte, os agentes capazes de, coletivamente, atribuir valor a uma obra de arte são marchands, críticos de arte, imprensa, casas de leilão, museus, colecionadores, etc. Eles operam ao longo de anos e por diversos meios — e.g., exposições, leilões, opiniões técnicas, livros de ficção, etc. Com o tempo (e dependendo da efetividade dessas ações), a ideia de que uma certa pintura é muito valiosa pode ir se tornando "autoevidente" e ganhando legitimidade.
Qualquer ocidental hoje reconhece a Mona Lisa em um piscar de olhos. No começo do século XX, porém, a obra era bem pouco conhecida. O gatilho que catapultou o quadro para a fama foi seu roubo do Museu do Louvre há cerca de cem anos. O roubo teve uma ampla cobertura midiática e foi essencial para que a obra se tornasse conhecida. A partir daí, houve um verdadeiro “efeito bola de neve” em sua notoriedade. Junto com a fama, aumentou a importância — e, com isso, o valor — do quadro.
Em um caso assim tão extremo, acabamos não percebendo de que tudo não passa de uma construção social. Intrincada? Sim, claro, uma construção social intrincada. Mas, ainda assim, nada mais do que uma construção social.
Ao afirmar que a Mona Lisa é uma construção social, não estou afirmando que o quadro não tem mérito algum. Esse não é o ponto. (Sou leigo em pintura, mas meu entendimento é que há propriedades técnicas notáveis na Mona Lisa que a fazem especial.[2]) Meu ponto é simplesmente que a maior parte do “valor” da Mona Lista está na construção social que se formou ao seu redor.
Mas como a construção social em torno de Bitcoin emergiu?
Construções sociais que geram de demanda
Em sua origem, Bitcoin foi concebido para ter propriedades técnicas[3] (no mínimo) intrigantes. Com o passar do tempo, grupos de seres humanos não só passaram a admirar essas propriedades, como começaram a evangelizar outros seres humanos sobre tais qualidades. A partir disso, como consequência, emergiu sua curiosa e poderosa construção social.
Não me parece ser por acaso que a sequência de grupos sociais que se interessaram por Bitcoin se assemelha à sequência típica envolvida na difusão de arte (e, mais amplamente, de cultura). Bitcoin começou com "experimentadores" na vanguarda e, aos poucos, tem capturado o Zeitgeist. E, eventualmente, pode ser que Bitcoin se torne mainstream.
Dando nomes aos bois — aos grupos sociais:
A adoção de Bitcoin começou com os cypherpunks, que vêem em Bitcoin uma maneira atacar o status quo sócio-econômico (por definição, são "rebeldes" à margem). Depois, vieram os nerds da computação, capazes de enxergar a beleza do Bitcoin como criação técnica. Daí, com a montanha-russa no preço, vieram os especuladores, que vêem na volatilidade uma oportunidade de dinheiro fácil. Mais recentemente, veio o chamado “dinheiro institucional” (de fundos de investimento, ditos profissionais), que tem procurado proteção contra uma possível escalada da inflação (após COVID-19).
Para mais sobre a adoção de Bitcoin, veja Bitcoin, FOMO e Ganância.
Itens de colecionador digitais e com tiragem limitada
Sob esse prisma de arte, o que é Bitcoin?
São itens de colecionador.
Itens de colecionador digitais, que não podem ser falsificados e que possuem tiragem limitada a 21 milhões de unidades.[4]
Além de (forma simplificada) não ser falsificável e de ter tiragem limitada, Bitcoin — assim como a Mona Lisa — faz bem poucas promessas de utilidade prática a quem o possui. É justo dizer que Bitcoin e arte tem fim em si mesmos. Seu valor depende completamente dos olhos de quem as vê.
Em outras palavras, a demanda — tanto por arte, quanto por Bitcoin — é gerada inteiramente por suas construções sociais.
Em 2017, Ben Thompson comentou sobre esse fenômeno de forma bastante eloquente:
Bitcoin has been around for eight years now, it has captured the imagination, ingenuity, and investment of a massive number of very smart people, and it is increasingly trivial to convert it to the currency of your choice. Can you use Bitcoin to buy something from the shop down the street? Well, no, but you can’t very well use a piece of gold either, and no one argues that the latter isn’t worth whatever price the gold market is willing to bear. Gold can be converted to dollars which can be converted to goods, and Bitcoin is no different. To put it another way, enough people believe that gold is worth something, and that is enough to make it so, and I suspect we are well past that point with Bitcoin.
E também em 2021, de forma mais sucinta:
Bitcoin’s value is rooted not in the Bitcoin blockchain, but rather in the collective belief of millions that it is in fact valuable.
Greater fool theories
Do ponto de vista financeiro, ter Bitcoin hoje é – pura e simplesmente – uma aposta de que, no futuro, será possível encontrar quem o compre por um preço acima do preço atual.
Bitcoin hoje é um exemplo clássico do que os anglófonos chamam de greater fool theory. Em português direto: um trouxa compra Bitcoin hoje e torce para que, quando quiser vender, haverá alguém ainda mais trouxa para comprá-lo mais caro.
Sem exageros, o mesmo pode ser dito de arte. Porque sua demanda também vem de construções sociais, obras de arte, assim como Bitcoin, são, do ponto de vista financeiro, greater fool theories.
Em uma visão mais benevolente, Bitcoin e obras de arte, apesar de greater fool theories, podem também serem vistas como uma forma de proteger parte do patrimônio contra riscos extremos (e.g., imagine a situação dos judeus na década de 1930, perseguidos por governos nazifacistas, que confiscavam bens que não podiam ser escondidos).
Ainda no assunto finanças, Bitcoin e arte são — além de uma maneira de esconder patrimônio — um caminho para eventualmente fugir de impostos.
Bitcoin parece, mas não é arte
As semelhanças entre arte e Bitcoin são várias, mas, claro, tem limites. Bitcoin não é arte.
Bitcoin difere da Mona Lisa e de outras obras de arte em pelo menos dois pontos fundamentais:
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Obras de arte podem ser expostas para outros verem e tê-las confere status a seus colecionadores
Arte, ao longo de séculos, cultivou um nicho na sociedade que confere grande status a quem é colecionador de obras. Receber convidados em sua casa e ter um Van Gogh na parede da sala de jantar, inevitavelmente lhe confere um ar de refinamento em diversas rodas da alta sociedade (por todo o mundo!). Ter “descoberto” Bitcoin before it was cool (digamos, em 2012) até pode dar a alguém o direito de se gabar e obter algum status em determinados círculos sociais. Porém, o nível de prestígio público por se ter Bitcoin é muito mais restrito. Não existe um “clube” de elite (ainda?) em que ter Bitcoin é requerimento para ser aceito. -
Bitcoin é um item de colecionador facilmente divisível; obras de arte originais, não
Você pode até ter um chaveiro da Mona Lisa — ou uma selfie no Louvre com ela ao fundo, ou uma réplica da pintura na parede da sua casa —, mas (para todos os efeitos) você nunca será o dono da pintura original. A sua relação com Bitcoin, por outro lado, pode ser fundamentalmente diferente. Você pode ter um pedaço do próprio Bitcoin, o original.
Os seguidores de Bitcoin pregam que Bitcoin é (ou se tornará) muito mais do que um mero colecionável digital. Se Bitcoin fosse apenas um tipo de colecionável digital que nerds trocam entre si, eu não estaria escrevendo sobre Bitcoin aqui agora. Bitcoin seria como selos e cartas de Magic: The Gathering — ou seja, algo com utilidade e valor restritos a nichos.
Para Bitcoiners, Bitcoin deveria ser visto e tratado, no mínimo, como uma commodity ou, no melhor dos casos, como o dinheiro do futuro.
Você pode estar pensando: ora, a Mona Lisa é uma obra-prima da pintura e não é diretamente comparável a Bitcoin, um sistema de incentivos envolvendo seres humanos e computadores. São maçãs e bananas! Você não está totalmente errado se estiver pensando assim, mas bear with me, essa analogia pode ser frutífera! ↩︎
Além de características técnicas, um amigo (que entende bem mais de arte do que eu) me ensinou que o fato de a Mona Lisa ser uma pintura original de Leonardo da Vinci ajuda a explicar seu enorme valor. Ou seja, em arte, grande parte do valor vem de quem assina a obra. O autor (o artista) é parte essencial da construção social em torno de obras de arte. ↩︎
Eis três exemplos de propriedades intrigantes. (I) Bitcoin é um tipo de ativo em que não é preciso confiar em intermediários ou contrapartes — somente na matemática. (II) Bitcoin foi desenhado para que não ser controlado por apenas uma entidade ou pessoa (múltiplos atores, com interesses próprios, ditam o seu futuro). (III) Do ponto de vista monetário, Bitcoin tem uma taxa de emissão (inflação) já publicamente estabelecida desde seu início (e absurdamente difícil de ser modificada — sob pena de a construção social ruir.) ↩︎
A rigor, cada unidade de Bitcoin é divisível em até 10^8 pedaços menores. Portanto, o total de pedaços de Bitcoin que jamais existirão é 21 * 10^6 * 10^8 = 21 * 10^14. ↩︎